Artigo — Coisas sem valor
Quanto vale uma floresta intacta e preservada, uma montanha rochosa imponente e bela, o ar puro? Como mensurar o canto dos pássaros, a limpeza dos rios, um animal selvagem livre na floresta ou no banhado?
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Magali Schmitt
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©Comitesinos
Aos olhos do materialismo frio estas coisas não têm valor. Não geram lucro que possa ser acumulado e que nos permita exibir o status resultante deste acúmulo
Quanto vale uma floresta intacta e preservada? Quanto vale uma montanha rochosa imponente e bela? Quanto vale o ar puro? Como mensurar o canto dos pássaros, a limpeza dos rios, um animal selvagem livre na floresta ou no banhado? Por incrível que pareça em nosso mundo estas coisas não valem nada se permanecerem intactas e livres como foram criadas pelos processos na natureza.
Uma árvore cortada, desdobrada em tábuas, tem valor econômico. Viva, ela não vale nada. Se seu corte, transporte e desdobre custarem menos que o preço da madeira no mercado, se, vendendo o conjunto de tábuas que ela fornece, obtivermos um valor maior do que nos custou fazê-la, então os manuais de economia nos dizem que fizemos um negócio economicamente rentável.
E dizem o mesmo se demolirmos uma montanha coberta de florestas para obtermos minério e madeira, se sujarmos o ar e os rios com alguma atividade industrial, se roubarmos o espaço vital do animal nativo e calarmos o canto do pássaro através da implantação de um loteamento. Em nenhum lugar dos livros de economia se calcula o valor destes bens vitais. Quanto perderemos com a sua falta?
Aos olhos do materialismo frio estas coisas não têm valor. Não geram lucro que possa ser acumulado e que nos permita exibir o status resultante deste acúmulo. Não podem ser possuídas puras como são. Só maculadas ou destruídas é que têm valor econômico.
Em nenhum cálculo econômico está computado o valor da perda de um hectare de terra fértil desertificado, de um rio outrora limpo que hoje é poluído. Estas coisas não têm valor. Não se pode ter lucro possuindo-as. Estes valores não são pesquisados e incluídos pelos economistas porque o valor da perda de uma floresta, necessária para o equilíbrio do clima e do ar das futuras gerações, é muito maior do que o lucro que se obtém destruindo-a.
Porque aí os cálculos diriam que a operação é antieconômica, que o processo de desenvolvimento baseado na destruição irracional é insustentável, que compromete o futuro da vida! Isto mesmo! Estas coisas “sem valor”, como uma árvore, um rio limpo ou o contato com a vida selvagem, é que garantem a nossa existência. É o que nos dá sustento e constitui nosso substrato vital.
Só pessoas que não amam a própria vida não conseguem ver isto. Só elas conseguem conceber um sistema de vida em que a destruição das bases vitais do planeta para gerar lucro é mais importante do que a manutenção dos fatores necessários a uma vida de qualidade, uma vida de prazer e harmonia, uma vida de felicidade. Só quem não tem prazer no fato de estar vivo, pura e simplesmente, e vive atordoado com a ideia de preencher este vazio em sua existência com milhares de objetos e vidas sobre as quais possa exercer poder e controle, diz que estas coisas não têm valor. Que não vale a pena defendê-las ou preservá-las. Estas pessoas é que passam a sua vida enjambrando planos de destruição para transformar tudo em objetos vendáveis a preços compensadores. Para estas pessoas a vida não vale realmente nada. Nem a sua e nem a dos seus contemporâneos, nem a dos que estão por vir.
E pelo jeito que as coisas vão indo, a vida não vale nada mesmo. Quando se vê um mundo em que as crianças não têm escola, têm que começar a trabalhar cedo porque os pais não ganham o suficiente para dar-lhes uma vida digna. Quando se vê que estas crianças crescem num mundo de carências materiais e afetivas, cercadas de conflitos, numa sociedade em que a vida não vale nada.
É por causa destas coisas que os ecologistas propõem uma economia em que a produção de bens para a satisfação das necessidades humanas considere o valor das perdas impostas às leis que regem o processo vital. Que esta economia indique métodos de produção de alimentos que não destruam a fertilidade dos solos, que aponte processos de geração de energia que não causem impacto ambiental, que considere econômicos somente aqueles processos industriais que preservem os rios e o ar puros. Que a produção de madeira preserve as matas através de cortes seletivos. Que a vida seja preservada num mundo que reparta de maneira justa os bens que a natureza não nos cansa de dar. Estas são coisas que têm um valor real e não um valor fictício impingido pela propaganda.
Só com a defesa organizada destas coisas “sem valor” é que evoluiremos para um mundo em que ao ser humano viva em harmonia com a natureza, em que a vida seja amada e respeitada. Sem esta organização em defesa da vida contra as poderosas estruturas e instituições que hoje ditam as regras do processo de destruição do ser humano e da natureza, este prosseguirá até a morte de tudo.
Quanto antes acabar este estado de impotência desanimada, mais chances teremos de construirmos o mundo em que todos alcancem o fim elevado a que se destinam, de levarmos uma vida cujo valor esteja simplesmente no fato de estar acontecendo plenamente, em meio ao respeito à manifestação das demais criaturas do universo.
*Arno Kayser — membro do Comitesinos, agrônomo, ecologista e escritor.